Por Michel Zaidan Filho
Os professores da linha de Direito do Trabalho e Teoria Social, do programa de Pós-graduação em Direito, da UFPE têm discutido muito sobre o objeto formal do Direito do Trabalho. Iniciou-se, na área, uma linha de investigação que toma “o trabalho livre e subordinado” como o alvo por excelência do chamado Juslaboralismo. É interessante a discussão porque “o trabalho livre e subordinado” é a atividade laboral alcançada pela legislação trabalhista brasileira, ora profundamente ameaçada pela lei da Terceirização e a reforma trabalhista (e pela PEC da reforma da previdência Social). Há, entre os estudiosos da área, muitas críticas ao “trabalho livre e subordinado”, como objeto da Justiça do Trabalho, sobretudo seu caráter de reprodução das relações sociais assalariadas em regime de exploração capitalista da força de trabalho. Tudo isto vem acontecendo num momento em que o mundo parece ter virado de “ponta-cabeça” e nada parece estar seguro na regulação jurídica das relações sociais. Questiona-se até se tem sentido a existência da Justiça trabalhista e o próprio Direito do Trabalho.
O mundo nem sempre foi assim. A Legislação do trabalho – tal como a conhecemos – é fruto das lutas sociais na história da república brasileira, mormente depois da Primeira Guerra Mundial e a Revolução de Outubro. O constitucionalismo social avançou muito depois destes eventos, sob o acicate da organização sindical dos trabalhadores. Nem sempre existiu a regulação jurídica das relações de trabalho. No início, era o Direito Civil (e a teoria da autonomia da vontade nos contratos civis) que regulava as relações laborais (“locação de trabalho”). Não havia ainda a menor preocupação em proteger o “hipossuficiente”, na relação entre patrão e empregado. Era coisa privada, regida pelo Código Civil, mediante um contrato de locação de serviços (curiosamente, hoje, haja quem defenda a volta desse pensamento). Durante o largo período de hegemonia do anarcosindicalismo e do sindicalismo revolucionário no Brasil, os trabalhadores mais politizados desdenhavam da intervenção do Estado no mercado de trabalho. Confiavam na auto-organização dos trabalhadores, através da ação direta, no âmbito das fábricas e oficinas. Eram militantes infensos à qualquer forma de institucionalização de direitos sociais. Só acreditavam na “ação direta” e na organização dos próprios trabalhadores (nem Estado, nem partido, nem patrão).
O advento de uma Legislação Social-trabalhista no Brasil é resultante das crises do liberalismo oligárquico da década de 20 e, sobretudo, da Revolução de 1930, quando os trabalhadores (“desorganizados” e controlados) passaram a fazer parte do contrato social da Nova República (Populismo). Daí o mito da outorga dos direitos trabalhistas por Getúlio Vargas. Desde da famosa Lei de Sindicalização, de 1931, foi instituída a cobrança compulsória do imposto sindical e o seu repasso aos sindicatos, sob a supervisão do Ministério do trabalho: ficando os sindicatos na obrigação de prestar contas minunciosamente do uso desse dinheiro.
O mundo sindical-trabalhista, com exceções, passou a se alimentar dessa massa formidável de recursos arrecadados compulsoriamente da folha de pagamento dos trabalhadores, com o seu consentimento ou não. E manteve uma burocracia que fez carreira no movimento sindical. Sempre houve que se opusesse a essa forma de sustento das organizações sindicais, lembrando que o mundo girava mesmo sem o imposto sindical obrigatório. Mas era evidente que os sindicatos, federações e confederações não estavam prontos para sobreviverem, de súbito, quando fosse interrompido o dreno financeiro da contribuição sindical obrigatória para as associações. Era necessário um período de transição, de fortalecimento das entidades sindicais e uma conjuntura econômica mais favorável. Cortar pura e simplesmente a contribuição obrigatória, com sindicatos pouco representativos e num ambiente de feroz desemprego e crise social, era como se fosse aplicar um golpe criminoso no movimento sindical, colocando nas costas dos trabalhadores, individualmente, a responsabilidade de contribuir ou não para a organização sindical. Resultado: muitos não entenderam a importância da intermediação associativa nas negociações trabalhistas. E preferiram dar as costas ao sindicato (e seu pedido de contribuição sindical voluntária) na ilusão de que, sozinhos, poderiam agora conseguir mais vantagens para si. Ledo e perigoso engano.
A recente medida provisória (objeto imediato de inúmeras ADins) que proíbe o desconto sindical na folha de pagamento dos trabalhadores é sim uma intervenção aberta do Estado na organização autônoma da classe operária e outros segmentos de trabalhadores. Os sindicatos tinham procurado contornar o problema aprovando projetos de negociação coletiva onde já estava presente o desconto sindical de cada trabalhador (e alguns magistrados já estavam sentenciando que os não associados daquela categoria não tinham direito à suas conquistas trabalhistas). A obrigação na hora presente de cada trabalhador assinar uma declaração de acordo com o desconto ou ter ele mesmo que recolher o desconto mediante boleto bancário se configura como ataque à organização dos trabalhadores e se beneficia da ignorância e das dificuldades materiais porque passam grande parte da classe trabalhadora, que não entende o importância estratégica dos sindicatos para a defesa de seus interesses.
Não há dúvida que o ideal da autonomia associativa passa pela auto-organização dos trabalhadores (incluindo a questão do seu financiamento). Mas não se imagine que isso possa acontecer num passe de mágica, de uma hora para outra. Isto é um processo pedagógico que demanda tempo, conhecimento, educação político-sindical que os nossos operários ainda não dispõem.
*Michel Zaidan Filho é cientista político e professor da UFPE.
**Ilustração: Migalhas