Bacurau neles!
- Por Rita Almeida
Mês passado, participei de uma atividade em que discutíamos a onda fascista da era Bolsonaro: como surgiu, do que se alimentou e como se propagou. Levantando as características psicológicas do fenômeno de massa presentes no fascismo alemão, tratávamos da semelhança daquele com o fenômeno brasileiro. Destaco a seguir algumas dessas características citadas por Freud, Reich, Le Bon e Adorno:
* O fascismo pertence à categoria de uma psicologia de massa, portanto, só poder ser explicado enquanto fenômeno coletivo.
* Sob tais condições, a massa regride a um nível de inteligência medíocre, bem abaixo do nível das inteligências ali presentes, caso fossem tomadas individualmente.
* Já o componente emocional da massa, por sua vez, alcança um nível elevado, tornando-a capaz de comportamentos irracionais e até mesmo bárbaros que, individualmente, os sujeitos não teriam coragem de adotar.
* As ideias e comportamentos da massa são assimiladas por contágio e não precisam conter em si nenhuma racionalidade, ao contrário, afinal tal contágio se dá pelo afeto e não pela razão. Por isso, mentiras, contradições e teorias conspiratórias são muito bem vindas ao discurso da massa.
* A massa é violenta e intolerante, por isso, tolera e até mesmo demanda, pela violência e a intolerância.
* Para liderar a massa fascista é necessário um sujeito com a qual a massa possa se identificar, como num espelho: com a racionalidade medíocre e afetivamente excitado, desequilibrado ou à beira da loucura. E sua fala não pode despertar a racionalidade dos seus seguidores, mas seus afetos, apenas.
* A libido da massa precisa estar deslocada para fins não sexuais, não devendo também ser sublimada para atividades culturais e racionais, sua potência e energia deve ser toda deslocada para os afetos despertados pelo líder.
* A massa é essencialmente conservadora e o discurso que prepondera é o da crença.
* A massa é um rebanho dócil e impetuoso que não sabe viver sem um senhor, a quem ela adora e deseja temer. Respeita a força e toma a bondade como sinônimo de fraqueza, por isso, prefere os tiranos.
Discutimos as semelhanças das características citadas com o caso brasileiro, pensando em formas de lidar com o fenômeno e, quem sabe, fazer “despertar” a massa. Ao final, alguém me perguntou:
- Isso tudo que você falou faz muito sentido e tal, mas nós temos um país aqui do lado chamado Nordeste que, de alguma forma, resistiu a essa onda de contágio? Como você explica isso? Será que não temos lá a resposta para fazer frente ao fascismo?
Quem acompanhou o mapa das eleições presidenciais de 2018 sabe que, de fato, o Nordeste foi a única região do país que não elegeu Bolsonaro. Dos 11 estados em que este candidato perdeu, temos TODOS os 9 do Nordeste.
Eu não soube como responder a pergunta que me foi feita. Ela ficou lá, entalada na minha goela, até que eu assisti Bacurau.
Bacurau me encantou de muitos modos, e continua fazendo eco, me trazendo novos sentidos e lançando questões. Mas de todas as narrativas contidas no filme uma das que mais me tocou foi a do casal de motociclistas sulistas que, se passando por turistas, auxiliaram um grupo de fascistas estrangeiros a colocarem sob a mira perversa deles, a comunidade nordestina de Bacurau. Na tentativa de se parecerem e se identificarem com os “brancos estrangeiros”, o casal rejeita Bacurau, sua cultura, recusa a conhecer seu museu, estranha sua música, desdenha seu nome e trai o povo dali. Os motociclistas tratam o povo de Bacurau como se não fossem seus compatriotas, negam a própria origem, inclusive a própria língua. Somente um pouco antes de serem mortos pelos patrões fascistas é que eles percebem o próprio engano: de que o fato de terem traído seu povo, sua cultura e suas origens não foi capaz de mudar o fato de que eles eram tão brasileiros como os habitantes daquela comunidade, portanto, descartáveis como eles. Negar a própria história a fim de se parecerem com aqueles que os violentava não os salvou, ao contrário, apenas os tornou mais frágeis e vulneráveis, afinal, a comunidade de Bacurau sobreviveu e eles não.
Eu disse que depois de Bacurau compreendi por que motivo, talvez, o Nordeste tenha resistido à onda fascista. Creio que o Nordeste, muito mais do que o restante do país, tenha guardado a importância da sua história, das suas raízes, da sua diversidade cultural, da sua música, da sua dança, da sua tradição religiosa sincrética. Um povo historicamente massacrado pela fome, pela seca, pelo descaso, soube se preservar e se salvar pela força de sua cultura e sua riqueza de narrativas. Os nordestinos se salvaram do fascismo porque, tal como o povo de Bacurau, eles sabem quem são e do que são feitos. Eles jamais se confundiriam a ponto de se identificarem com aquilo ou aqueles que se tornarão seus opressores e assassinos.
Se assim for, o povo de Bacurau não sobreviveu por ter sido capaz de matar seus algozes, ele sobreviveu porque soube muito bem se diferenciar deles.
É a diversidade e a diferença os maiores antídotos contra o fascismo.
Bacurau neles!
*Rita Almeida é psicóloga e psicanalista. Texto publicado originalmente no Jornal GGN.
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