Um cabo do Exército, veterano da missão no Haiti, foi morto a tiros na favela carioca
Foto: Rafa Von Zuben/Estadão Conteúdo
A TROPA ACUADA - Sepultamento do cabo Mikami: os militares estão em desvantagem nos domínios do tráfico.
Reportagem de Leslie Leitão
Fonte: Veja
Faltavam
cinco dias para o cabo do Exército Brasileiro Michel Augusto Mikami, 21
anos, encerrar a terceira campanha real de sua curta carreira militar. A
primeira foi a missão de paz da Organização das Nações Unidas no Haiti.
E depois a Copa do Mundo. O plano de Mikami era voltar para casa, em
Vinhedo, cidade vizinha a Campinas, no interior de São Paulo.
Como
parte da Força de Pacificação formada por 3 000 militares da Marinha e
do Exército, Mikami patrulhava as vielas do Complexo da Maré, aglomerado
de favelas na Zona Norte do Rio de Janeiro. A missão da tropa federal é
apoiar a polícia do Rio no que se chamou apressada e exageradamente de
“retomada do território do tráfico”.
Na tarde da sexta-feira 28,
em meio a um tiroteio com os bandidos donos do “território retomado”, o
cabo Mikami foi atingido por uma bala de fuzil na cabeça, que o matou
instantaneamente.
Desde a ação para debelar a guerrilha
comunista no Araguaia, em 1972, as Forças Armadas do Brasil não tinham
um soldado morto em combate em território brasileiro. O cabo, enterrado
com honras militares, é, porém, apenas mais um número da macabra
estatística do combate ao crime no Rio de Janeiro.
O ano de
2014 ainda não acabou e o número de policiais mortos a tiros por
bandidos no Rio de Janeiro chegou a 106 na semana passada. Uma cifra
assustadora quando comparada à de outros países. Sim, porque não há base
de comparação com cidades.
Em Nova York, neste ano, nem um
único policial morreu assassinado a tiros por bandidos. Zero. Em todos
os Estados Unidos, com quase uma vez e meia a população brasileira,
tombaram baleados por bandidos 46 policiais. Menos da metade do que os
bandidos mataram em 2014 só no Rio de Janeiro.
Todos os estados
americanos têm legislação que pune com mais severidade o cop killer, ou
assassino de policial. Em Nova York, o cop killer, não importa a
circunstância do crime, é enquadrado automaticamente na categoria mais
severa do código penal, o assassinato em primeiro grau. O condenado
nessa categoria não tem acesso a benefícios jurídicos, como a diminuição
de pena por bom comportamento.
VEJA foi ao Complexo da Maré na quarta-feira passada, cinco dias depois
da morte do cabo Mikami. O “território retomado”, a “comunidade
pacificada”, da propaganda oficial, vivia sua rotina esquizofrênica. As
ruas eram patrulhadas por jovens armados com pistolas e
radiocomunicadores. A menos de 100 metros de um posto do Exército
guarnecido com seis soldados, o carro da equipe de VEJA foi parado pelos
traficantes e vistoriado.
O gerente do grupo concordou em
falar, sem se identificar, dentro de um bar. Ali, tranquilo, deu uma
espantosa explicação para a coabitação de militares com bandidos em um
mesmo território: os criminosos têm a vantagem por estarem bem armados e
conhecerem melhor a região.
A morte do cabo Mikami foi descrita
por ele como um evento normal, incapaz de perturbar a “paz” do lugar:
“Se a gente quisesse, matava um soldado por dia”.
Mas,
sem que se desse a efetiva ocupação do território pelo estado, as
Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) instaladas nas favelas foram
sendo isoladas até chegar à situação atual de monumentos ao fracasso de
um plano que parecia vitorioso. Não é raro a guarnição de uma UPP pedir a
intervenção de unidades de elite para conseguir sair de sua base.
Só
no conjunto de favelas do Alemão foram registradas quase duas centenas
de tiroteios, escaramuças inconsequentes entre policiais e bandidos, sem
que nenhum lado se declarasse vencedor.
Na famosa Favela da Rocinha, a presença constante de 700 policiais não
consegue impor a ordem, tampouco impedir o tráfico de drogas e os crimes
violentos associados a ele. Rajadas de fuzis automáticos cortam o céu
noturno do morro que foi durante algum tempo a vitrine da política de
pacificação na cidade. Entre os 267 policiais baleados neste ano, 79
foram feridos em combates em áreas de UPPs, onde oito morreram.
É melancólico constatar que sob o rótulo de “pacificação” esteja
ocorrendo mesmo uma guerra. Além dos policiais mortos, perderam a vida
no Rio de Janeiro até outubro 481 pessoas em circunstâncias oficialmente
registradas em “autos de resistência”. Esse termo deveria descrever
apenas situação em que, esgotadas todas as outras opções, a polícia
recorre às armas para deter um criminoso.
Infelizmente, no Rio
de Janeiro, o “auto de resistência” pode ser mesmo a clássica
“resistência seguida de morte”, mas serve também para encobrir ações de
criminosos de farda. A boa notícia desse lado da trincheira é que as
mortes de civis em operações policiais na cidade têm diminuído ano a
ano: em 2007, antes do início das UPPs, foram 1 330. A má é que mais
policiais estão sendo assassinados.
“A verdade é que a polícia
está matando menos, mas seus homens continuam morrendo como moscas”, diz
Richard Ybars, antropólogo e policial civil.
A lógica mais simples levanta a seguinte questão quando alguém se detém
diante da resistência do tráfico no Rio de Janeiro: se os morros não
produzem drogas nem têm fábricas de armas pesadas, não seria o caso de,
em vez de correr em vão atrás do varejo, impedir no atacado o
fornecimento de cocaína e fuzis AK-47 aos bandidos?
Raramente se
consegue uma resposta satisfatória a essa pergunta. Uma fresta de luz,
porém, entra no debate quando se analisam as favelas do Complexo da
Maré. Com seus 130 000 habitantes, a Maré tem localização geográfica
estratégica. Fica próxima do Aeroporto Internacional Tom Jobim e tem
saída para o mar. A área é contígua às duas principais vias de trânsito
da cidade, a Linha Vermelha e a Avenida Brasil.
“A Maré é muito
importante na geopolítica do tráfico, porque quase tudo passa por ela.
Para os criminosos, é essencial comandá-la”, diz o sociólogo Cláudio
Beato, especialista em segurança pública.
Com sua óbvia
importância tanto para o atacado quanto para o varejo do comércio ilegal
de drogas, o Complexo da Maré deveria merecer atenção especial das
autoridades.
A região é policiada por soldados jovens vindos de
diversas partes do Brasil e treinados — quando são — para outro tipo de
batalha.
“Essa guerra não é nossa”, disse um deles a VEJA. Não é
mesmo. O militar das Forças Armadas é treinado para matar o inimigo.
Suas armas são canhões, bazucas, carros de combate, jatos e navios de
guerra. Reduzidas à função policial, as Forças Armadas correm o risco de
ser desmoralizadas por terem sido colocadas em uma guerra que não podem
vencer.
Foto: Brendan McDermid/Reuters
AÇÃO E REAÇÃO - Patrulhamento em Nova York, onde os assassinos de policiais
recebem pena máxima
O despreparo é uma queixa comum também em relação às forças que operam
nas 38 UPPs do Rio — um contingente incrementado ao ritmo de até 500
homens por mês, formados a toque de caixa para cumprir a meta de pôr a
segurança nas favelas nas mãos de uma tropa nova, livre de vícios.
“A ânsia política de colocar novas turmas nos morros prejudica a
formação”, afirma Paulo Storani, ex-capitão do Bope. A tropa das UPPs é
de fato majoritariamente nova, mas nem por isso vícios como corrupção,
desvios e apatia foram extirpados.
“A intenção era ‘uppeizar’ a PM, mas o que se vê é a ‘peemização’ das UPPs”, diz Beato.
Entre setembro e outubro, duas operações do Ministério Público contra a
corrupção na polícia puseram na cadeia mais de quarenta homens. Os
promotores investigam ainda uma fraude milionária em unidades de saúde
da corporação que deve levar à prisão de mais oficiais.
Em
consequência dessas denúncias, o comando da PM foi trocado. É um
movimento positivo, mas será preciso bem mais do que operações
episódicas para reverter a derrocada da segurança no Rio e impedir que
as UPPs sejam lembradas apenas como mais uma das tantas utopias
massacradas pela realidade.
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